A moto apagou na largada. E ninguém ali — nem o piloto, nem o público — sabia o que viria depois.
Do outro lado do mundo, em Viena, uma reunião fechada da KTM também começava com silêncio: o número vermelho na planilha não dizia tudo, mas já anunciava que a pista estava molhada demais para qualquer aceleração impensada.
Em Canelinha, houve quem respirou fundo, ligou de novo e largou do fundo. Em Viena, a KTM decidiu não esconder a crise e soltou um comunicado duro, direto, sem máscara.
Para ambas as situações: a corrida não se ganha na primeira curva. Mas é nela que se mede quem está realmente na prova.
1. A leitura do terreno é o que define quem continua
Desde os primeiros alertas, ainda em 2024, já se sentia a vibração estranha no motor da KTM. Uma freada ali, uma derrapada nos bastidores, e a sombra de uma reestruturação ganhando corpo.
Em dezembro, noticiamos aqui o início do processo de autoadministração da Pierer Mobility AG, destacando que nem toda freada significa quebra — às vezes é apenas o início de um pit stop estratégico.

O que se seguiu foi uma série de medidas: entrada de novos conselheiros, aprovação de captações estruturadas, e reorganizações de ativos. Tudo isso indicava tentativa de retomada — mas o mercado ainda não tinha, até então, uma visão consolidada da curva.
Na última semana, publicamos aqui no Show Radical uma análise preliminar sobre a situação da KTM, sugerindo freio aos eventuais julgamentos apressados e convidando o leitor a olhar o contexto antes da curva.
Agora, com o comunicado oficial divulgado pela empresa em 30 de abril, retornamos à pista com novos dados, nova paisagem — e uma nova topografia a ser lida. E sua data não é aleatória: ocorre às vésperas do vencimento da primeira parcela do plano com credores, no limite do prazo legal de publicação de resultados, e sob autorização formal da SIX Exchange Regulation AG.
Mais do que uma atualização, é um balizador de expectativa. Um gesto formal de dizer: “a curva é crítica, mas estamos nela”.
2. O Comunicado — e o que ele revela sem dizer
O relatório da KTM trouxe números fortes:
- Receita: €1,88 bilhão (-29% em relação ao ano anterior);
- EBITDA: -€484 milhões;
- EBIT: -€1,188 bilhão;
- Lucro antes de impostos: -€1,280 bilhão;
- Patrimônio líquido: negativo em €199 milhões;
- Dívida líquida: €1,64 bilhão;
- Redução de 874 funcionários em 2024, com mais 750 demissões no início de 2025;
- Suspensão de auditoria até definição do pressuposto de continuidade.

A decisão de postergar o relatório financeiro não foi fuga: foi o reconhecimento de que, sem garantir os aportes de €600 milhões, não há base técnica para assinar o balanço segundo as normas internacionais. Foi a comunicação sendo usada como instrumento de governança.
Mais do que isso: o comunicado explicita que, se o aporte não ocorrer, novos demonstrativos precisarão ser publicados com base em valores de liquidação. Não é uma possibilidade remota — é uma contingência calculada, explicitada com honestidade técnica.
O ponto decisivo aqui é o uso da comunicação como parte da engenharia institucional. A KTM comunicou porque precisava. Mas escolheu como comunicar: com dados auditáveis, com datas, com cenário alternativo, com tom direto.
E, para quem acompanha o comportamento técnico de empresas em processo de reestruturação, o comunicado cumpre quase todos os quesitos de uma comunicação institucional robusta:
- Consistência narrativa com os comunicados anteriores;
- Transparência nos números, riscos e alternativas;
- Proatividade ao divulgar marcos futuros;
- Alinhamento entre fala e ação — com medidas operacionais visíveis;
- Tom de comando: seco, mas presente;
- Engenharia de cenários explícita: continuidade condicionada, liquidação como plano B.
Esse padrão de disclosure (exposição controlada) se alinha às boas práticas internacionais — como as exigidas por regimes como o alemão, o austríaco ou o britânico — onde a comunicação é parte ativa da governança, não mero acessório de marketing ou relações públicas.

3. O paralelo de Canelinha: quem ouve o solo, fica de pé
A pista em Canelinha foi uma escola de escuta. Subidas cegas, canaletas em degraus, e um tipo de barro que não perdoa arrogância.
Foi ali que mesmo largando do fundo, houve vitória com leitura fina. Houve quem na primeira bateria não tenha encontrado o centro, mas que voltou na segunda com consistência e vitória. E o inverso também.
Ninguém venceu por acaso. Todos escutaram o traçado. Ajustaram postura. Adaptaram o tempo de reação. E isso, no motocross e nos negócios, é o que separa o talento da performance real.


4. A travessia como linguagem: entre motos e balanços
Reduzir para permanecer não é fraqueza. É autoconsciência.
E tanto a KTM quanto os pilotos de Canelinha mostraram isso. Num tempo em que todo mundo quer parecer mais forte do que é, quem reconhece os limites com elegância constrói respeito.
O comunicado da KTM não foi um pedido de socorro. Foi um recado de gente que ainda segura o guidão.
A estrutura do texto, ainda que fria e contida, apresenta todos os sinais técnicos de uma empresa que segue operando com integridade:
- Cenário alternativo (liquidação) explicitado;
- Medidas operacionais já em andamento (redução de estoque, corte de pessoal);
- Produção parcialmente retomada com apoio da Bajaj;
- Proatividade no uso do art. 53 para comunicar fatos relevantes mesmo sem balanço fechado.
Mesmo diante das incertezas do cenário internacional, há uma chave interpretativa importante: a KTM não apagou o Brasil do seu painel estratégico. Pelo contrário — mantém o país em rotação, como um motor que segue girando em baixa, mas nunca desligado. O movimento não é de expansão acelerada, mas de reposicionamento seletivo. E isso, num contexto de retração global, já diz muito.

5. Fechamento: curva não é obstáculo, é oportunidade de leitura
A curva que revela tudo tem suas camadas — ou melhor, suas canaletas. E cada uma delas exige mais do que técnica: exige leitura do momento, da posição na pista e dos corpos ao redor. Tem piloto que entra com tudo e rasga o traçado. Tem quem calcula, abre um pouco mais, preserva a linha. E tem quem, na dúvida, opta por não colidir — mesmo que isso custe a posição. Não é fraqueza. É discernimento.
- A primeira canaleta é a da percepção: onde se entende quem está em volta, quem está por dentro e qual o espaço real para a manobra.
- A segunda é a da escolha emocional: encarar, contornar, abrir ou romper. Nem toda decisão é sobre ganhar — às vezes, é sobre continuar inteiro.
- A terceira é a da leitura externa: porque quem assiste nem sempre entende. E os julgamentos vêm rápidos, como se a curva fosse simples. Mas só quem esteve ali sabe o que era risco real e o que era apenas ruído.
Em Canelinha, houve quem interpretasse mal a curva — dentro e fora da pista. Mas o que ela revelou, de verdade, não foi só quem passou reto ou quem ultrapassou. Revelou quem voltou para a segunda bateria com a cabeça no lugar. Revelou quem soube nomear sua dificuldade. E, sobretudo, revelou que, em curvas como essa, nem sempre vence quem passa — mas quem permanece com lucidez.
Ruído não é dado
Entre a redução de produção e o adiamento do relatório, o que mais se espalhou foi ruído. Teorias, rumores, suposições travestidas de certeza. Mas quem acompanha com profundidade sabe: nem toda ausência de comunicado é silêncio — às vezes é cálculo. Nem toda interrupção é colapso — às vezes é preparo.
A KTM comunicou tardiamente, sim — mas comunicou com estrutura. E quando a informação vem assim, com cenário A e plano B, sem euforia nem maquiagem, ela pede do leitor o mesmo: pausa, escuta e leitura crítica.
Porque no motocross e no mercado, a boa informação respeita o tempo da verdade. Se a primeira curva define quem continua na prova, então a KTM ainda está viva.
E se a segunda etapa do MX1 GP ensinou algo, foi isso: quem não ouve o terreno, cai.
Mas quem aceita recalibrar, soltar o acelerador por um segundo, se reposicionar, pode não ganhar a bateria de hoje — mas encontra o caminho para a temporada.
A moto apagou. Mas ligou de novo. A planilha veio pesada. Mas o comunicado foi inteiro.
E, no fim das contas, é isso que separa os que performam dos que apenas participam.
Por Monike Clasen.
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